Amor e Sedução
菊豆 – Jú Dòu – Amor e Sedução (1990)

菊豆

Amor e Sedução

de Zhang Yimou
Por
Wu Ming
em
17/7/2023

Amor e Sedução é a história de dois amantes condenados à desgraça na China feudal dos anos 1920. Yang Jinshan (Li Wei) é o perverso proprietário de uma tinturaria onde trabalha seu sobrinho adotado, o submisso Yang Tianqing (Li Baotian). Em idade avançada, Jinshan adquire Ju Dou (Gong Li) como esposa na expectativa de que ela lhe gerará um filho herdeiro. 

Reféns de uma condição de tortura e opressão, Ju Dou e Tianqing buscam alento num relacionamento amoroso que dará origem a uma criança. Novas dinâmicas se estabelecem, porém nada muda na condição de inferiorização social dos amantes, que se vêem fadados a viver reféns das forças de um sistema feudal caracterizado pelo autoritarismo e a tradição.

O filme é baseado no conto Fuxi, Fuxi (伏羲伏羲, 1987)1, de Liu Heng. Na mitologia chinesa, Fuxi (伏羲) e sua irmã Nüwa (女娲) são as divindades responsáveis pela criação dos seres humanos. De acordo com o texto clássico Shan-hai Ching (山海经)2, eles teriam sido os primeiros moradores da Montanha Kunlun (昆仑), o ponto de conexão celestial com o divino (axis mundi). A complementaridade de Fuxi e Nuwa evolui para um casamento. E com a benção divina, eles geram os primeiros humanos. Nüwa cria figuras de barro e lhes confere a forma humana. Fuxi sopra seu sopro divino provendo-lhes vida e alma.

Segundo Zhang Yimou, a motivação para adaptar a história era de “retratar a opressão e o confinamento do povo chinês, perpetuada há milhares de anos e em ambos os sexos, porém com maior intensidade sobre as mulheres”. A base mitológica pode ter sido o ponto inicial, porém algo que marcou muito o diretor na obra de Heng foi sua ruptura com tradição épica para algo mais verossímil com a realidade do povo chinês. Ele afirma: “Temos [na China] um legado histórico de extinção do desejo humano.”3

A ideia de perda de identidade é uma constante nos trabalhos iniciais de Zhang. Seu cinema alegórico representa a grande estrutura que enclausura e enfraquece o indivíduo, aqui representado através da fábrica de tinturaria e seu maquinário. Da mesma forma como viria a acontecer no ulterior Lanternas Vermelhas (1991): os gigantescos muros do feudo delimitam a opulenta realidade reservada apenas a uma pequena e privilegiada elite.

Uma vez delineado o arranjo desse tecido social, encontramos na figura de Jinshan sua manifestação individual – o veículo de opressão. De uma posição de poder, ele explora e manipula seus vassalos. Despótico por natureza, escraviza o sobrinho e o controla em todas as suas ações. Não o paga por seu trabalho, nem o permite desfrutar da vida. Mas sua faceta mais violenta se revela no tratamento a sua recém-chegada (comprada) esposa – sendo esta a terceira.

Descobrimos, já no início do filme, que as mulheres anteriores teriam sido agredidas e mortas em consequência do tratamento bestial do senhor feudal. E, da mesma forma, Ju Dou será alvo deste facínora que desconta sua frustração (com sua infertilidade velada) em maratonas de espancamento e torturas físicas e psicológicas. Montado sobre sua nova presa imobilizada na cama, o sádico Jinshan escarnece: “quando eu compro um animal, o trato como quiser”.

Ironicamente, é na figura de um animal que percebemos a construção de Jinshan como uma personagem plausível (e ainda mais detestável). Atordoado, o tirano se vê refém de suas emoções ao constatar seu cavalo doente, e corre à cidade em busca de ajuda. 

Cansada de apanhar, Ju Dou percebe na ausência do marido a oportunidade para se juntar a Tianqing. Trata-se, antes de tudo, de uma aliança nutrida pelo sofrimento. Uma cumplicidade estabelecida pela desgraça. Ela o seduz, mas nada poderia ser menos erótico do que a cena em que Ju Dou, esgotada física e mentalmente, expõe seu corpo nu violado e cheio de hematomas ao sobrinho que a observa por um buraco na parede.

Mas esta é uma união impossível. A força invisível da máquina patriarcal é poderosa demais para permitir uma união pacífica: essa relação extrapola a dimensão matrimonial, amplificando para a condição de afronta às bases que garantem a preservação do sistema opressor. O tabu reside não na traição extraconjugal, mas na pretensão de se querer alterar sua condição pré-determinada num sistema de estagnação social. Nada pode desafiar um status quo perpetuado há séculos.

Mesmo com o nascimento do filho e a ausência do patriarca, ao casal não é permitido apreciar a liberdade na plenitude. O pequeno Tianbai (Yi Zhang), ainda que filho biológico de Tianqing e Ju Dou, traz consigo a reencarnação da maldade do falecido déspota. Cabe ao ressentido e amargurado garoto o papel de carregar a estrutura de poder que garantirá a manutenção da estrutura opressiva.

No universo ritualístico construído por Zhang Yimou, Tianqing simboliza a submissão moral do homem comum, humilde e fiel às normas sociais. Sofre, mas é incapaz de rebater com maldade. Possui desejos, porém controla seu ímpeto suficientemente para não sofrer as externalidades de suas pequenas transgressões. Afinal, por mais reduzido que seja, ainda possui algum valor social a preservar.

Já a Ju Dou não é assegurada a mesma prerrogativa. Ela carrega consigo as amarras permanentes de uma condição social inferiorizada. Assim como Tianqing, ela também tem sonhos e anseios, porém sua realidade é muito mais proibitiva. Incapaz de sequer sonhar, resta, por fim, apenas a rebeldia. Se nada pode ser feito, melhor deixar a estrutura queimar por completo. E assim ela o faz.

E ainda assim, o fogo da desobediência da mártir – que purifica e precede a renovação – é menos catártico do que se pode imaginar. Trata-se de sua rendição. Se com este grito do oprimido Zhang Yimou queria vindicar o papel da mulher numa sociedade machista, nada mais justo do que intitular o filme Ju Dou. Afinal, é o nome dela que sofre acima de todos.

Obras citadas

  1. Tradução em inglês de Fuxi, Fuxi encontrada em “The Obssessed (1991)” , Liu Heng
  2. 山海经 [Shānhǎi jīng] - The Classic of Mountains and Seas (3 BC) , Autor desconhecido
  3. Celluloid China: Cinematic Encounters with Culture and Society (2002), Kuoshu, H. H. 

Filme completo (infelizmente sem legendas)